quinta-feira

O endividualismo - por Manuel Maria Carrilho




Pouco se fala nele, mas foi quem deu forma, tanto ao ultraliberalismo como ao minissocialismo. Refiro-me ao endividualismo, isto é, ao novo tipo de individualismo de massas que nas últimas décadas mudou todas as regras do jogo político. Foi ele que inculcou, num e noutro, valores e aspirações comuns, tornando as diferenças entre eles muitas vezes indiferentes, quando não insignificantes.dn


É justamente por isso que agora, mesmo quando há mudanças, tudo muda tão pouco. E que se enfatizam tanto as variações de estilo, ao contrário do que acontece com a substância e com o conteúdo. E que, por mais cómicos que apareçam a fazer de políticos (como Peppe Grilo, em Itália) e públicos a fazer de massas (como os "indignados", um pouco por todo o lado), pouco ou nada verdadeiramente se altera.


O endividualismo é o resultado da última metamorfose do indivíduo moderno, do processo da sua afirmação e expansão ilimitadas. É o produto da sua profunda cumplicidade com o "paradigma do ilimitado" que marcou todo o século passado, sobretudo a segunda metade, garantindo a todos uma energia inesgotável, um consumo interminável e um crédito sem fim.


O endividualismo representa o apogeu jubilatório do indivíduo que se realiza pelo crédito, isto é, pela dívida. Ele tornou-se, no mundo de hoje, no pilar mais generalizado - e talvez no mais resistente! - deste paradigma em crise. Ele decorre da afirmação sem limites dos direitos dos indivíduos, da progressiva identificação do direito com a proteção da esfera do privado e da rasura sem precedentes das referências a valores ou convicções de ordem coletiva. As chamadas agendas fraturantes têm aqui a sua mais do que óbvia origem, bem como a principal razão do seu frenético elã.


O endividualismo foi contudo viabilizado e estimulado - ao contrário do que se diz e por mais paradoxal que tal pareça a muitos - pela poderosa afirmação de um Estado social que, libertando pela primeira vez na história os indivíduos da necessidade de terem de preparar o seu futuro e o dos seus (garantindo-lhes reformas, educação, saúde, etc.), o tornou um soberano cada vez mais centrado em si próprio.


O endividualismo acelerou, por isso, o processo de desarticulação interna das democracias, cavando um abismo cada vez maior entre a afirmação da liberdade individual dos cidadãos e a sua capacidade de ação cole- tiva: mais livres, sim, sempre - mas também mais impotentes!


O endividualismo constitui hoje o ponto cego das esquerdas. O recente "manifesto" para uma esquerda livre, "mais livre, mais igual e mas fraterna", é - como quase toda a conversa que anda por aí sobre a refundação da esquerda - uma excelente ilustração deste persistente bloqueio. Por excelentes que sejam, e são, os objetivos dos seus promotores, nada mudará apenas com bons sentimentos e com generosas intenções.

Porque o verdadeiro desafio não é ganhar um campeonato de boas ações, mas uma dificílima batalha das ideias para a qual não se vislumbram hoje, ao nível político, capacidade intelectual ou instrumentos analíticos à altura dos problemas do mundo contemporâneo, seja no plano dos valores, da estratégia ou dos instrumentos de ação.

O facto é que a esquerda permitiu nas últimas décadas, quase sem resistência, a consagração do ultraliberalismo, assistindo primeiro deslumbrada, depois atordoada e agora talvez arrependida, ao triunfo simultâneo e solidário do financismo, do tecnologismo e do individualismo. Mas onde estão hoje as alternativas políticas a tudo isto? - eis o que conta, o resto é conversa.

Continua a ler-se a realidade com as lentes de há 20 ou 30 anos, as mesmas que levaram a esquerda a não pressentir as consequências da globalização, a não perceber a transformação do capitalismo em financismo, a desvalorizar as alterações demográficas, a negligenciar a questão da distribuição da riqueza, a não detetar o retorno das mais brutais desigualdades, a ignorar a fragilização do Estado providência, a incensar a "estupidez sistémica" induzida pelas novas tecnologias

Ou, ainda, a não compreender o significado do individualismo sem freio e as novas modalidades da subjetividade que ele implica, a acomodar-se com as alterações do regime e do estatuto do trabalho, a pactuar com a desvalorização do imposto e o aumento da dívida, a não reconhecer a bomba-relógio do euro sem união política ou a não ser capaz de avaliar as consequências da mundialização da cultura.

Na verdade, não foi talvez uma esquerda mais livre que faltou. Mas uma esquerda com mais mundo, mais atenta e estudiosa, mais propositiva e audaz.


É por isso que, ao contrário do que aconteceu com a crise do capitalismo dos anos 30 do século passado, hoje a oferta ideológica alternativa é tão escassa, quase nula.


Como se, face ao ultraliberalismo, o socialismo estivesse condenado a formas de sobrevivência minimalistas. É neste impasse que a esquerda, sobretudo a de índole partidária, está hoje mergulhada.

Obs: O autor partilha aqui um conjunto de ideias interessante contra o neoliberalismo, mas não deixa de ser curioso que a sua farpa maior vá, direitinho, para António Guterres (que nunca cita), ao tempo PM quando Carrilho era ministro da Cultura (nomeado por aquele), e em que fez coisas interessantes, embora não me lembre de quais. 

A ilustrar este ponto, recordo que a abertura da torneira do crédito fácil pela banca começou no início de 2000, data em que as pessoas e as famílias se começaram a endividar em larga escala para compra de habitação, carro, viagens, obras e o mais. 

Mas a maior crítica dirigida por Carrilho à própria esquerda espelha, paradoxalmente, a sua falta de mundo, o mesmo é dizer que carrilho, ao longo desta década que passou, também não conseguiu emprestar uma dimensão menos paroquial à esquerda de foi ministro, comentador, um importante player social com grande presença mediática e, sobretudo, como filósofo, em que o seu contributo podia (e devia) ter sido maior. 

Escrever artigos de jornal, como este, ainda que bem estruturados, também eu faço em meia hora. Não preciso de mais. 


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